quarta-feira, 30 de março de 2022

Um a cada sete

 [alerta de gatilho: violência contra mulher]


Ele pegou o chapéu preto de veludo fino, que era o favorito dele, e colocou junto com o resto, na mala de viagem estampada com um Mickey gigante. Elisa não gostava muito dele, assim como não gostava da camisa branca bem cortada e da saia de linho que ele havia escolhido, mas ela nunca teve muito bom gosto. Havia dias em que se vestia como uma vadia genérica, outros como uma senhora com vinte gatos. O homem vasculhou as coisas de Elisa para ver se não estava esquecendo nada importante e encontrou um vape de tutti-frutti, escondido entre os absorventes. Ela adorava aquele negócio, aquela fumaça asquerosa para todo o lado. Agora ele entendia porque ela tinha começado a usar perfumes e pasta de dente de tutti-frutti, ponto para ela. Jogou o vape no lixo e fechou a mala tamanho 28 com dificuldade.

Desceu a mala com esforço pelos quatro lances de escada. Ele amava o Bom Fim, mas seus prédios antigos sem elevador o davam nos nervos. Parou para tomar um ar, estava uma noite fria com neblina baixa, um clássico de Porto Alegre e perfeito para seu objetivo.

Começou seu cortejo pelo estúdio de Yoga. Foi lá que ele observou Elisa pela primeira vez, os cabelos colados no pescoço por causa do suor, olhos negros sem confiança e passos rápidos. No caminho para casa, comprou um cachorro-quente, o que não ajudava com seus quilos a mais, algo que precisaria ser corrigido.


A próxima parada era a Lancheria do Parque, lugar do primeiro encontro e da primeira correção. Algumas pessoas o repreenderam com o olhar e ele aprendeu a não fazer mais aquilo em público.

Decidiu fazer uma parada rápida na Santo Antônio, a rua para a qual ela fugiu pela primeira vez. Ele se distraiu e ela conseguiu escapar pela janela, atravessou a Osvaldo e entrou na primeira rua que viu. Como era burra. Teria mais sorte se tivesse ficado na avenida. Não que ninguém tenha visto ela correndo gritando e ele a arrastando de volta para casa, apenas ninguém disposto a se meter em briga de marido e mulher. De qualquer forma, foi uma perseguição prazerosa.

Chegaram ao destino final, a Redenção. Mais especificamente um pedaço da praça em frente a janela do homem. Aquele era o lugar perfeito, queria poder olhá-la todos os dias e que ela só tivesse olhos para ele. Começou a cavar.

terça-feira, 29 de março de 2022

Brisa

("Wind", Vladimir Kush)
Neblina que sai da tua boca
Do brilho carmim vem tirar sarro
Labios vermelhos sopram erro?
O melhor ou o pior provoca?

Vivo a viagem, essa troca
Contigo nesse sonho bizarro
Sou nós, não eu, de mim me desgarro
É, a tua loucura me toca

Imagens formadas por aí, no breu
Ventilamos segredo, sussurro
Devaneamos ou apenas eu?

Sob o chapéu o olhar se perdeu
Ou me beija, ou me dá um cigarro
Vape de Julieta é Romeu

Proposta 02 | Juntando elementos

Todos têm letra legível. Sem drama.
Idealizada entre um devaneio ao som do pianista Vitor Araújo e uma ida ao famigerado Bar do Maza, surgiu a segunda proposta de escrita. Cada um dos membros do grupo escreveu um elemento em um papelzinho. Por fim, todas as palavras foram reveladas.

O desafio constituiu em escrever um texto (como sempre, sem forma ou gênero predefinido) utilizando todos os elementos, literal ou figurativamente. As palavras foram:
• Neblina
• Chapéu
• Viagem
• Vape (obrigado, Gabi)
• Loucura

Textos:
29/03 | G. Benaduce | "Brisa"
31/03 | Clara Lorandi | ainda não publicado!
01/04 | Gabriela Migoto | ainda não publicado!
04/04 | Maya | ainda não publicado!

domingo, 27 de março de 2022

Neolinguagem, humor e comunidade LGBTQIA+

(Reuters)
Com a popularização dos debates sobre linguagem neutra crescendo em diversos ambientes, o assunto é considerado por diversas pessoas como polêmico, (e até já vi gente colocando a proposta com “um radicalismo e extremismo da esquerda”). Abrindo as redes sociais e tendo conversas com pessoas a fora, percebi como para muitas essa seria uma questão de piada, motivo de deboche, constantemente vemos pessoas usando as novas formas de fala de maneira errônea propositalmente, normalmente usando o “e” no final das frases que não possuem flexão de gênero. Apesar de muitas pessoas não verem problema nenhum isso, afinal não há problema nenhum em rir de ideias e propostas que se discorda, sinto que existe alguns detalhes nesse assunto constantemente ignorados.

Quando falamos de representações LGBT, uma das primeiras imagens que vem a nossa cabeça é aquela figura da “bixa louca”, nas novelas por exemplo é muito comum ver homens cis hétero fazendo papéis ou de gays afeminadas ou de travestis como um alívio cômico, sendo normalmente feito de forma pejorativa com intuito de rirmos dessa figura. Com os avanços das pautas sociais esse estilo de deboche já é inadmissível para boa parte da população brasileira, afinar a voz, se tratar no feminino e gesticular bastante com as mão no intuito de rir é facilmente considerado homofobia hoje em dia.

Outra coisa importante mencionar é como historicamente a humanidade lidou com questões de transgeneridade, associada a transtornos e doenças mentais, por anos e anos as a comunidade trans era aprisionada e torturada em manicômios, sempre sendo demonizada e associada a questões de “loucura”, e representação essa que deixa marcas na nossa sociedade até hoje, já que não é difícil vermos pessoas colocando LGBTs como “confusos”.

Voltando para as questões de neolinguagem, além das piadas e deboches, é muito comum entre grupos que vão contra as novas propostas se expressarem como se estivessem sendo atacados, obrigados e “cancelados” por se negarem a usar as novas formas de linguagem. É importante nesse momento lembrarmos de como travestir e mulheres trans são marginalizadas, sendo sempre retratadas como pessoas que se exaltam e que são naturalmente agressivas (fruto daquela associação com doenças mentais que citei antes), só o fato de uma pessoa trans se opor a uma pessoa cis pode muitas vezes ser colocado como grosseria, e isso não muda nos debates em relação a linguagem neutra. E para somar com isso, as próprias “piadinhas” normalmente são feitas como um ar de esnobação, o alvo é sempre quem utiliza da linguagem neutra que nessa situação é colocado como um sujeito ridículo, sem motivos para levarmos o a sério (em outras palavras estão chamando o sujeito de burro). Com a vilanização e os estereótipos da comunidade LGBT, podemos concluir que no final tudo não passa de uma licença para expor seus preconceitos e desconfortos. Como antigamente, o alvo das piadas não só é a maneira de falar, mas também as pessoas descontentes com as imposições de gênero, são os mesmos estereótipos e os mesmos instrumentos para disfarçar o preconceito.

Para finalizar vejo gente que apoia e utiliza a neolinguagem acharem bom o fato dela ter virado piada, já que isso de certa forma ajudaria a normalizar toda a situação. Sabemos que isso é estratégia de extremistas brancos e neonazis, mas isso muda completamente pois eles não são uma minoria social, muito pelo contrário, são assumidamente opressores, as piadas que normalizam essas ideias sempre tem como alvo as pessoas racializadas e não os próprios nazistas. Quando trazemos isso para questões de gênero a lógica não se aplica.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Relato sobre a vida

(Sem nome, Kaiserr)
o cheiro de cigarros que eu tento não fumar me envolvem na melancolia do fim de tarde
me disseram tanto sobre ela
sobre seus caminhos, suas aventuras, seus chicotes e abraços
mas até agora só a observo
distante
formosa como uma onda
eu escuto o som do mar e quero mergulhar
mas o medo me paralisa
não sei para onde vai, não sei como dar meu rumo a ela
não posso só boiar e deixar ela me levar
as ligações químicas no meu cérebro não me permitem ter esse tipo de relação
com nada e ninguém
tão minha, mas tão longe

não me dê uma chance porque eu não vou saber aproveitá-la

quinta-feira, 24 de março de 2022

O último verão da infância

("The Oak Rocking chair", Sally Rosenbaum)
Ele sempre vestia camisas de mangas compridas e calças sociais, fosse inverno ou verão. Seus longos cabelos, já brancos, eram trançados pela minha avó todas as noites.

Nós passávamos os verões em sua casa. Um simples chalé de madeira numa fazenda de frutas em Fearaland. Os bosques eram perfeitos para brincar, e passávamos os dias correndo e inventando histórias, voltando apenas na hora do jantar.

Lembro-me da única vez que meu avô falou comigo. Foi no verão antes de entrar na primeira série, eu tinha apenas 14 anos. Era um dia quente, e o sabor do suco de amora da minha avó ainda estava na boca. Meus irmãos e eu colocávamos os sapatos para ir brincar, quando uma voz rouca desconhecida falou meu nome.

"Harel", a palavra quebrou o silêncio e nos obrigou a virar. Ele estava com os olhos arregalados olhando o horizonte. Com urgência, ele me disse: "não brinque com as crianças dos humanos".

"Sim, vovô". Tentei entender como descobrira que eu e aquele menino ruivo havíamos trocado sorrisos no dia anterior.

Voltamos para jantar pouco antes do amanhecer. Sujo de terra, decidi me trocar antes de comer. No caminho de meu quarto, o último do corredor, passei pela porta do de meus avós. Curioso, espiei pelo vão entreaberto.

Meu avô estava de frente para o espelho, apenas de calça. Suas costas eram uma massa de cicatrizes de queimaduras. Cobrindo ombros e braços também, a visão da pele ressecada e enrugada fez meus olhos se arregalarem. Suei frio. Então eu vi.

Nos seus pés, no chão, estava meu amigo ruivo, com a cabeça estranhamente separada do corpo. Meu avô segurava a ensanguentada Hjerta-spisa, "aquela que se alimenta de corações", a espada da família. Ele me viu pelo espelho.

Não lembro do que aconteceu depois. Lembro de estar ajoelhado no chão ao lado dele, meu avô caído de costas e tentando respirar. Lembro de ouvir ele engasgar no sangue do profundo corte em sua garganta. Lembro do abraço de minha avó, dizendo que eu não precisava ter visto aquilo, ao me tirar do quarto.

Hoje os humanos não moram mais nesta terra. Eles não vêm aqui. Por medo, creio eu. Mas sempre digo para meus filhos, "são eles quem vocês devem temer".